Desterro





Eu ia triste, com a tristeza discreta dos fatigados, com a tristeza torpe dos que partiram tendo despedidas,

tão preso aos lugares de onde o trem já me afastara estradas arrastadas, que talvez eu não estivesse todo inteiro presente no horror dessa viagem.

Mas a minha tristeza pesava mais do que todos os pesos, e era por causa de mim, da minha fadiga desolada, que a locomotiva, lá adiante, ridícula e honesta, bracejava, puxando com esforço vagões quase vazios,

com almas cheias de distância, a penetrar no longe. A tarde subiu do chão para a paisagem sem casas, e o comboio seguia,

cada vez mais longe, mais fundo, a terra mais vermelha, o esforço maior, as montanhas mais duras, como sabem ser duros os caminhos, pelos quais a gente vai, só pensando na volta...

Coagulada em preto, a noite isolou as cousas dentro da tarde, e o barulho do trem foi um rumor de soçobro no fundo de um mar sem tona.

Nem mesmo foi a noite: foi a ausência brusca e absurda do dia.

Tão definitiva e estranha, que eu me alegrei, esperando o não continuar da vida, o não-regresso da luz, o não-andar-mais-de-trem...




O sono das águas - Guimarães Rosa





Há uma hora certa, no meio da noite, uma hora morta, em que a água dorme.

Todas as águas dormem:

no rio, na lagoa, no açude, no brejão, nos olhos d'água, nos grotões fundos E quem ficar acordado, na barranca, a noite inteira, há de ouvir a cachoeira parar a queda e o choro, que a água foi dormir...

Águas claras, barrentas, sonolentas, todas vão cochilar.

Dormem gotas, caudais, seivas das plantas, fios brancos, torrentes.

O orvalho sonha nas placas da folha geme adormece.

Até a água fervida, nos copos de cabeceira dos agonizantes...

Mas nem todas dormem, nessa hora de torpor líquido e inocente.

Muitos hão de estar vigiando, e chorando, a noite toda, porque a água dos olhos nunca tem sono...
Navegando meus sonhos

Desterro





Eu ia triste, com a tristeza discreta dos fatigados, com a tristeza torpe dos que partiram tendo despedidas,

tão preso aos lugares de onde o trem já me afastara estradas arrastadas, que talvez eu não estivesse todo inteiro presente no horror dessa viagem.

Mas a minha tristeza pesava mais do que todos os pesos, e era por causa de mim, da minha fadiga desolada, que a locomotiva, lá adiante, ridícula e honesta, bracejava, puxando com esforço vagões quase vazios,

com almas cheias de distância, a penetrar no longe. A tarde subiu do chão para a paisagem sem casas, e o comboio seguia,

cada vez mais longe, mais fundo, a terra mais vermelha, o esforço maior, as montanhas mais duras, como sabem ser duros os caminhos, pelos quais a gente vai, só pensando na volta...

Coagulada em preto, a noite isolou as cousas dentro da tarde, e o barulho do trem foi um rumor de soçobro no fundo de um mar sem tona.

Nem mesmo foi a noite: foi a ausência brusca e absurda do dia.

Tão definitiva e estranha, que eu me alegrei, esperando o não continuar da vida, o não-regresso da luz, o não-andar-mais-de-trem...




O sono das águas - Guimarães Rosa





Há uma hora certa, no meio da noite, uma hora morta, em que a água dorme.

Todas as águas dormem:

no rio, na lagoa, no açude, no brejão, nos olhos d'água, nos grotões fundos E quem ficar acordado, na barranca, a noite inteira, há de ouvir a cachoeira parar a queda e o choro, que a água foi dormir...

Águas claras, barrentas, sonolentas, todas vão cochilar.

Dormem gotas, caudais, seivas das plantas, fios brancos, torrentes.

O orvalho sonha nas placas da folha geme adormece.

Até a água fervida, nos copos de cabeceira dos agonizantes...

Mas nem todas dormem, nessa hora de torpor líquido e inocente.

Muitos hão de estar vigiando, e chorando, a noite toda, porque a água dos olhos nunca tem sono...